quinta-feira, 4 de julho de 2013
Opinião - Nova lei que fiscaliza o Ecad é vitória dos artistas
Ao que tudo indica, o Brasil está muito próximo de criar um órgão com a competência de fiscalizar o Ecad, por meio do projeto de lei 129, originário do Senado. Com isso o país deve encerrar mais de 20 anos de uma trágica excepcionalidade: somos o único país do mundo em que a entidade que arrecada e distribui direitos autorais não possui qualquer forma de supervisão ou regulação. Isso aconteceu desde quando Collor extinguiu, em 1990, o órgão que tinha competência para essa supervisão, que jamais foi recriado.
Até mesmo os Estados Unidos, país onde existe concorrência entre as entidades arrecadadoras, possuem um complexo sistema de regulação dos "Ecads" locais, incluindo mecanismos de defesa dos artistas e tribunais para a correção de preços abusivos.
No caso do Brasil a situação é preocupante: há uma entidade que detém o monopólio sobre suas atividades, mas ninguém a fiscaliza. Isso viola o princípio básico de que nunca deve haver um monopólio sem regulação.
As distorções geradas por essa situação foram muitas e penalizaram os artistas e criadores brasileiros. Na sua maioria absoluta, mesmo aqueles no topo da fama, como Roberto Carlos, Gilberto Gil, Ivan Lins, Caetano Veloso, dentre muitos outros, sentiam-se incomodados e insatisfeitos com uma entidade que arrecadava mais a cada ano, mas não operava com transparência, nem mesmo com um padrão de serviços que se comparasse ao oferecido por entidades similares em outros países.
Além disso, os diretores do Ecad e das associações que o compõem praticamente exerciam funções vitalícias. Muitos estão no mesmo cargo há 20 ou até 30 anos, sem renovação ou atualização.
Por fim, a entidade sofria com problemas de representatividade. A internet criou um enorme contingente de novos criadores, de DJs a artistas de música eletrônica, de bandas indie, a projetos caseiros de música experimental. Nenhum deles se sentia representado pelo Ecad. E essa percepção era real: o sistema de representatividade interna era obscuro e obsoleto. Em vez de um critério democrático (uma pessoa um voto), era adotado um critério plutocrático (as sociedades que arrecadavam mais dinheiro possuíam mais votos). Isso fazia com que apenas duas associações (dentre 9 existentes) concentrassem todo o poder decisório do órgão, blindando-se não só da fiscalização externa, mas também da fiscalização interna, que poderia ser feita pelos próprios artistas.
Com isso, as queixas de que o Ecad era uma caixa preta se multiplicavam. Elas culminaram no trabalho da CPI do Senado Federal (da qual, vale mencionar, participei a convite do Senado como advogado expert no assunto, ajudando a redigir o relatório final). O projeto de lei que agora se aprova tem origem nos trabalhos da CPI, que fez um minuncioso relatório apontando todos os problemas do órgão. Outro elemento importante é que o trabalho da CPI ajudou a informar o Cade, o órgão responsável pela defesa econômica no Brasil, que terminou por condenar o Ecad na prática de formação de cartel e abuso de posição econômica dominante.
Esse foi o estopim que faltava para que os artistas se articulassem definitivamente em torno dessa importante causa. Com isso, os artistas tornaram-se imediatamente protagonistas no debate do projeto do Senado. Bem articulados, apresentaram diversas sugestões de modificação e aprimoramento, que foram aceitas e incorporadas ao projetos, melhorando sua redação.
Com a aprovação do projeto pelo Senado, o Brasil agora tem a chance de ter uma das leis mais modernas do ponto de vista comparativo global sobre a arrecadação e distribuição dos direitos autorais.
O projeto traz diversas conquistas e ponderações, muitas delas sofisticadas e bem-pensadas. Por exemplo, estabelece que as associações que compõem o Ecad agora terão todas o mesmo peso de voto (1 voto por associação). Essa solução engenhosa faz com que os artistas passem a procurar se filiar a cada uma delas não mais por razões políticas, mas sim por razões de eficiência. Antes os artistas basicamente filiavam-se a apenas duas associações, justamente aquelas que controlavam todo o sistema (as outras eram associações que não tinham praticamente nenhum poder decisório).
A partir de agora, a associação que oferecer os melhores serviços e ao menor preço (a taxa de administração menor) vai atrair mais artistas e criadores. O sinal para a tomada de decisão deixa de ser um sinal político, errôneo por princípio, e passa a ser um sinal de eficiência.
Além disso, o Ministério da Cultura passa a ter a prerrogativa de fiscalizar o Ecad e até mesmo de cassar sua licença de funcionamento em caso de abusos graves (respeitado o princípio da ampla defesa). Os princípios dessa fiscalização incluem a garantia de assegurar a transparência, eficiência, modernização e que os artistas e criadores sejam o centro e elemento mais importante na arrecadação e distribuição de direitos autorais.
Faz sentido. Em outros países o artista tem acesso aos seus direitos a receber de forma eletrônica, como se fosse uma conta bancária. No Brasil algo assim ainda estava longe de ser implementado.
A lei também estabelece que a cobrança de direitos autorais deve ser feita de forma proporcional a sua utilização. Faz sentido. Um restaurante que toca músicas apenas na hora do almoço, por 3 horas por dia, tem de pagar de forma proporcional a esse uso. Um restaurante que, por sua vez, fique aberto 24 horas e toque música durante todo esse período deve pagar mais.
Antes dessa mudança todos pagavam o mesmo preço. Se o restaurante tocasse apenas uma música durante o mês, já teria de pagar o preço "cheio", relativo a todo o repertório de músicas do Ecad. Era um sistema de tudo ou nada. Ou pagava por todo repertório, ou não podia tocar música legalmente.
A lista de conquistas da lei que fiscaliza o Ecad é enorme. É praticamente uma nova alvorada para os artistas e criadores brasileiros. Muitos deles envolvidos na luta por um aprimoramento do sistema há mais de 15 anos. Era uma luta que parecia inglória. Mas que agora, graças ao protagonismo e à articulação ocorrida entre os próprios artistas, está prestes a tornar-se vitoriosa. Ganha o criador, ganha a nova geração de artistas que não se viam representados para o Ecad. E ganha a sociedade como um todo, que assiste de camarote à possibilidade de finalmente o Ecad começar a entrar em sintonia com os valores do século 21.
FONTE: Ronaldo Lemos* Especial para o UOL
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